domingo, 15 de maio de 2016

Dom, Histórias e Calotes

Dom

Toda escola tem ao menos uma aluno ou aluna apontado como “o desenhista” pelos colegas. Pessoas que desenham bem são poucas, mas não são difíceis de achar. E tais criaturas, iluminadas, que nasceram com o dom dos traços certos, sofrem, são exploradas. Durante anos eu fui o desenhista da minha sala, embora tivessem outros, eu era o abençoado. Se tinha trabalho envolvendo desenho, colegas juntavam-se ao meu redor, como urubus ao redor da carniça. 
Eu recebia vários pedidos de desenho, inclusive de seres que eu nunca via, ou conversava durante o recreio.
Obs.: Particularmente não acredito em "dom". Acredito sim que algumas pessoas têm uma facilidade natural em determinadas atividades humanas, mas que essas habilidades também podem ser adquiridas com a prática.


Algumas histórias

Uma vez na 7ª série, época de páscoa. A professora de artes pediu que todos desenhassem um coelho. Pois bem, desenhei coelhos pra metade da sala, de todos os tipos, formas. Quando chegou na vez de desenhar pra mim, perdi a vontade. Eu não queria ver coelhos na minha frente por um bom tempo.

Ainda na 7ª série, um desenho que me marcou muito foi um que fiz tendo como tema a queda das torres gêmeas. Foi muito louco, modéstia à parte! Caprichei nos detalhes da cidade, dos prédios, o avião se chocando. A professora expôs n’um painel dentro da sala, alguns dias depois ele sumiu.

No 1º ano, fiz outro desenho épico. A professora pediu como trabalho a criação de uma história em quadrinhos com o tema relacionado à educação sexual. Em princípio, eu iria fazer com outros dois colegas, um ia elaborar a história, eu o desenho e outro zé roela pintaria. Tivemos algumas divergências e eu decidi fazer tudo sozinho. Segui carreira solo. Era um tema delicado pra ser abordado por um garoto tímido. O que eu fiz? Apelei para o humor. Adaptei uma piada de português e não é que deu certo! Uma página só, inteiramente a lápis.

Uma das boas lembranças que tenho de Pedro de Toledo é da EE Otaviano Soares Albuquerque. Em alguns anos a escola organizava uma gincana com o tema folclore. As turmas eram dividias em três grupos: Mula-sem-cabeça, Lobisomem e Saci. Havia diversas provas, dança, poesia, teatro e, adivinhem? Desenho! Mas em 2003, foi singular. Competindo pelo grupo das mulas, eu já sabia o que fazer. Na noite anterior eu já tinha elaborado um pequeno rascunho em casa. Como eu tenho a capacidade de refazer um mesmo desenho sem precisar copiar, a vitória era certa. Início da prova, cada um sentou em sua mesa e recebeu uma cartolina e um lápis comum. Um dos concorrentes trapaceou, sacou um lápis de desenho e começou a fazer os rabiscos dele. O terceiro concorrente começou a fazer seu boitatá, que mais parecia uma tentativa de Shen-Long depois do crack. Enfim, fiz o meu melhor, caprichei nos detalhes e venci aquela prova. Porém o meu grupo ficou em segundo. No dia seguinte haveria a final com os vencedores do período da manhã, tarde e noite. O desenhista do grupo vencedor vem a minha sala e pede para que eu desenhe na final. Eu sabia quem eu enfrentaria, um cara muito bom lá da Vila Batista. Vi os desenhos dele e me preparei, já tinha a ideia do que fazer. Mas meia hora depois o mesmo cara volta à minha sala e diz que não precisava mais eu desenhar. Paciência! Depois eu soube que o grupo da noite venceu.

Calotes

Ainda no tempo de escola, um colega me chamou e disse que um cara lá das bandas da Vila Batista estava procurando um desenhista. O trabalho era desenhar na parede de um quarto de criança. A pintura quem faria seria outra pessoa. Pois bem, conversamos e acertamos o preço e no dia seguinte eu já comecei o desenho. Lembro que levei uns três dias pra terminar. Três dias indo e vindo dos cafundós, na zona rural de Pedro de Toledo. O mais difícil era cobrar o cara. Ainda voltei duas vezes naquele fim de mundo e retornei de mãos vazias. A desculpa sempre era de que não tinha dinheiro. Fui vencido pelo cansaço e desisti de cobrar.

Quando comecei a fazer desenhos de fotos, foi uma evolução pessoal. De olho nisso, algumas pessoas se interessaram e chegaram até mim através de amigos. Um deles me trouxe algumas fotos, fiz alguns desenhos e entreguei. Quando pensei que receberia, recebi uma nova proposta por mais desenhos. Eu na empolgação aceitei o desafio. Pra que? Nesse tempo mudei-me para Peruíbe. Algumas semanas depois voltei à Pedro de Toledo na intenção de devolver as fotos, entregar os desenhos e receber. Fui à loja de materiais em que o cara era dono. Orgulhoso, avistei um dos desenhos que fiz colado na parede, próxima ao caixa. Sem muita conversa, o cara me atendeu, sacou dois reais e me entregou.

Desenhos, todo mundo elogia, todo mundo quer, mas ninguém está disposto a pagar por eles. Mais recente, uma colega de trabalho da minha irmã viu pelo facebook o retrato que fiz da minha sobrinha e quis um também. Fiz de boa vontade. Falei pra minha irmã "entrega pra ela e o que ela pagar pode ficar pra você". A pessoa recebeu o desenho, elogiou, o tempo passou e não tocou no assunto mais. Não foi o primeiro calote e nem o último, com certeza.

Moral da história: se não valorizarmos o nosso trabalho, ninguém valorizará. A arte é vista como bela, para ser apreciada, mas ainda nos dias de hoje não é vista como trabalho. Independentemente se você desenha, pinta, toca, canta ou planta bananeira. Você merece receber pelo que se propôs a fazer!
Hoje não me iludo mais. Não desenho por dinheiro, faço desenhos porque gosto. Nas minhas horas livres e quando estou afim.

Por hoje é só.

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